O tempo da Quaresma é por excelência o tempo favorável, o dom divino da providência, que nos permite, através de uma graça especial, olhar para dentro de nós e enxergar a nossa miséria. Ao mesmo tempo, somos atingidos pelo olhar misericordioso de Deus sobre nós, que infunde em nós o arrependimento, a compunção do coração.
Eis o verdadeiro sentido da quaresma: voltar nosso olhar para Deus que é bom, mas justo! Bom, pois nos perdoa e se faz mais próximo de nós. Justo, porque exige uma conduta de vida que seja boa e que produza bons frutos.
Neste tempo, todos somos chamados a prática da penitência, não como mero formalismo, mas, como atitude que irradia a consciência de que somos pecadores e de que ainda não possuímos aquela “última face” que Deus quer que tenhamos, ao apresentarmo-nos diante da Sua face. Vivemos perante a face de Deus, escondidos debaixo de máscaras de pecados sob pecados, que os Santos Anjos, no tempo da Quaresma, querem arrancar de nós, a fim de que nos tornemos algo mais verdadeiro diante de Deus.
A máscara mais pesada, densa e opaca que os Santos Anjos querem destruir é a concepção mundana da penitência, da oração e do jejum como comércio com Deus. Essa noção perversa de comércio com Deus é o ressoar soberbo em nosso coração do “sereis como Deus” (Gn 3, 5) que o demônio colocou na humanidade, desde a queda dos nossos primeiros pais. Imaginamos, escondidos de nós mesmos, que através de nossa penitência, do nosso esforço em rezar mais e do nosso sofrido jejum, Deus PRECISA me atender, Ele tem o DEVER de dar aquilo que peço. Sem percebermos, estamos nos colocando par a par com Deus, de modo que achamo-nos capazes de permutar algo com Ele.
Penitência, oração e jejum nunca foram moedas de troca! Pelo contrário, são um humilhar-se na presença do Senhor, esperando que esse reconhecimento do nosso NADA, atinja o coração de Deus, fazendo com que Ele se incline misericordiosamente sobre nós e nos perdoe. Isso vemos claramente nos exemplos do antigo testamento e nos salmos.
Quando o grande rei Davi pecou contra o Senhor matando o soldado Urias para ficar com sua esposa, Natã foi enviado a ele e disse:
“Assim fala o Senhor, o Deus de Israel: Eu te ungi como rei de Israel e salvei-te das mãos de Saul. Dei-te a casa do teu senhor e pus nos teus braços as mulheres do teu senhor. Entreguei-te a casa de Israel e de Judá. E, se isso te parecer pouco, vou acrescentar outros favores. Por que desprezaste a palavra do Senhor, fazendo o que lhe desagrada? Feriste à espada Urias, o heteu, fazendo-o morrer pela espada dos amonitas, para fazer de sua mulher a tua esposa. Por isso, a espada jamais se afastará de tua casa, porque me desprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para fazer dela a tua esposa. Assim diz o Senhor: Da tua própria casa farei surgir o mal contra ti. Tomarei as tuas mulheres sob os teus olhos e as darei a um outro, que se aproximará das tuas mulheres à luz deste sol. Tu fizeste tudo às escondidas. Eu, porém, farei o que digo diante de todo o Israel, e o farei à luz do sol[1]”.
Em seguida o que fez Davi? Mesmo arrependido e o Senhor tendo-o perdoado, as consequências do seu pecado recaíram sobre seu filho. Davi então humilhou-se na presença do Senhor para reparar seu pecado, e o fez com a consciência e confiança de que Deus olharia pra sua humilhação e se compadeceria dele. Nunca passou pela cabeça do rei Davi que essa sua atitude estava par a par com Deus e que dela resultaria a vida de seu filho, pelo contrário, esperou confiantemente, com fé em Deus. Mas Deus não o atendeu!
“Davi implorou a Deus pelo menino e fez um grande jejum. Voltando para casa, passou a noite deitado no chão. Os anciãos do palácio insistiam com ele para que se levantasse do chão; mas ele não o quis fazer, nem tomar com eles alimento algum. Ora, no sétimo dia, a criança morreu.[2]”
Mesmo após sua penitência, oração e jejum não terem sido atendidas pelo Senhor, o Rei Davi não cessou de confiar no Deus de Israel, mostrando-nos deste modo que, a verdadeira oração, jejum e penitência repousam numa consciência clara de que Deus terá a última palavra, e essa palavra será a melhor para nós. Nessa atitude sóbria perante o amor sóbrio de Deus, ressoa o “não seja feita a minha vontade, mas a tua!” (Lc 22, 42) que o Senhor dirigiu ao Pai no horto das oliveiras.
Eis a chave de inclinação interior para toda penitência, jejum e oração quaresmal: “Que seja feita a tua vontade e não a minha”. Precisamos e devemos ter junto das nossas práticas de penitência o coração humilde e servil. Coração que sabe que tudo vem de Deus e que é NADA diante Dele, sem Ele.
Quando começarmos a rezar, jejuar e fazer penitências com a convicção de sermos NADA diante de Deus, nossa vida espiritual, nossa vida interior ganhará nova intensidade, conduzindo-nos para uma transformação sincera e frutuosa, pois, este é objetivo central do tempo da Quaresma e é também o desejo de todos os Santos Anjos que, neste caminho quasresmal, cantam constântemente:
Dilígite Dóminum, omnes sancti eius: fidéles consérvat Dóminus
Amai o Senhor Deus, seus santos todos, ele guarda com carinho seus fiéis
et retríbuit abundánter faciéntibus supérbiam.
mas pune os orgulhosos com rigor.
Viríliter ágite, et confortétur cor vestrum,omnes, qui sperátis in Dómino.
Tende coragem e um coração firme, vós todos que esperais no Senhor.
Santa e abençoada Quaresma a todos!
Ir. Tiago de Brito, O.R.C
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[1] II Samuel 12, 7-12
[2] II Samuel 12, 16-18