“E até de noite me adverte o coração…” (Sl 15,7)
O salmista diz que até de noite o seu coração o adverte em seu leito. É como quem diz “durmo, mas meu coração vigia” (Ct 5,2). Trata-se, sem dúvida, de alguém que aprendeu a estar constantemente presente a si e a DEUS e, por isso, pode ouvir a voz que ressoa no seu íntimo.
Mas o que é coração? É o homem interior, a vida interior, o mais íntimo do homem, do qual o coração físico é símbolo. É um fato interessante ser este o primeiro órgão formado em nosso corpo. O coração é a sede do homem. O centro de nossa identidade.
Neste coração pensamentos puros e impuros podem entrar e maus desejos podem sair como disse nosso Senhor…
Ele é o lugar onde DEUS habita, onde o “eu” encontra o “TU” e se fazem “um” pelo amor.
Nós somos nosso coração. Porém, é muito mais fácil a identificação com imagens falsas que trazemos de nós mesmos, ou a identificação com uma profissão, com nossas atividades. Todas essas coisas andam ao redor da periferia do coração – e, às vezes de maneira incômoda e barulhenta -e, nos identificamos esses pensamentos. Deixamos que eles entrem e se instalem. Esse é um “falso eu”, uma ilusão, uma imagem que queremos projetar para o mundo por causa de nossa imaturidade e insegurança.
Desse modo, vivemos de maneira superficial em nossos relacionamentos: fingimos diante de DEUS e dos homens e, escondendo-nos de nós mesmos, enganamo-nos até a nós mesmos em uma vida superficial. E isso não propositadamente, mas por acreditarmos ser a “casca” de nossa personalidade somente: o médico famoso, o pai de família fracassado, etc.
O que fazer então? Se estamos vivendo assim, estamos vivendo ao nível dos sentidos e das fantasias! É preciso silenciar nossas ilusões, pelo jejum, pela solidão, pela reflexão e pelo exame de consciência sincero, para ir descobrindo esse “lugar-estado” em que se pode estar e a partir do qual podemos aprender a viver. Aprendendo a viver a partir desse lugar – do coração – é possível responder aos estímulos ao contrário de reagir impulsivamente. Conforme vamos acolhendo as sugestões do Anjo: sugestões de amor, de pureza e de humildade, vamos nos tornando aquilo que já somos: imagem de DEUS e rechaçando às sugestões do inimigo de ódio, de luxuria e de soberba.
O místico Martyrius Sahdônâ diz:
“Ah! o olhar puro do coração que vê bem, graças à sua pureza, Aquele diante do qual os Serafins cobrem o rosto! Onde, pois, [DEUS] será amado a não ser no coração? E onde se manifestará senão aí? Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a DEUS”.
A vivência a partir do coração ensina-nos a viver a graça batismal e a viver a graça de cada comunhão eucarística. Aprendemos que somos relação; meu “eu” é uma relação. Eu existo porque recebo o ser do PAI. Sou filho de DEUS porque recebo a graça santificante – sou filho no FILHO. Como disse Santo Agostinho:
“Quid tam tuum quam tu, quid tam non tuum quam tu?” (o que é tão teu como tu mesmo, e o que é tão pouco teu como tu mesmo?)
in Ioannis Evangelium Tractatus 29,3.
Descobrimos nosso eu, nossa “verdadeira voz”. Descobrimos que DEUS, TRINDADE, habita no coração. Refletindo sobre isso, Merton escreve em algum lugar: não devemos conceber a inabitação como um conclave de quatro pessoas atuando juntas, pois quando estamos unidos ao PAI, ao FILHO e ao ESPÍRITO, somos muito mais “um só” do que quando estamos sozinhos…
É como fala Ratzinger em Introdução ao Cristianismo: a unidade mais verdadeira não é a do “átomo”, mas a que acontece pelo amor, como a TRINDADE que é a relação de Três em um só DEUS.
Com efeito, nessa jornada ao coração, descobrimos, como Agostinho, que nada é tão meu quanto eu mesmo, e nada é tão pouco meu como eu mesmo… E o efeito disso é alegria extática!
O convite do nosso Anjo é: chegar a si, afastando-se das exterioridades e rótulos, entrando em si, regressando a si mesmo como relacionalidade com DEUS.