Os quatro seres vivos e os quatro Evangelhos

Os santos Evangelhos apresentam a maior história jamais contada: a vida do Filho de Deus que se fez homem! Cientes desse fato tremendo, não nos admiramos de que o Espírito Santo tenha vigiado cuidadosamente os autores sagrados. Os Padres do Concílio Vaticano II nos asseguram que “tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo”.[1] O Espírito Santo, por sua vez, vale-se dos Santos Anjos para comunicar as inspirações divinas. Assim, os Santos Anjos “ficam por detrás” dos evangelistas, por assim dizer, como servos do Espírito Santo, ajudando-os, com as suas inspirações, a escrever a vida de Jesus.

Isso pode ser dito em geral, já que é verdade para qualquer inspiração que se origina em Deus, e de maneira particular para os quatro santos Evangelhos.

É o que diz Sto. Tomás de Aquino:

Ensina Dionísio, que “a ordem da divindade é governar os inferiores pelos intermediários”. Ora, os Anjos ocupam um lugar intermédio entre Deus e os homens, pois participam mais do que estes da perfeição da divina bondade. E é por isso que as iluminações e as revelações divinas são levadas de Deus aos homens por meio dos Anjos.[2]

É ensinamento firme que os Anjos transmitem inspirações de Deus: “As iluminações e revelações divinas são levadas de Deus aos homens por meio dos Anjos”.[3]

São João da Cruz, ensinando de maneira bíblica a mesma doutrina, afirma que é:

a mesma Sabedoria de Deus que purifica os anjos de suas ignorâncias, instruindo-os e esclarecendo-os sobre as coisas desconhecidas, derivando-se de Deus pelas hierarquias, desde as primeiras até às últimas e descendo destas últimas aos homens. Por esta razão, todas as obras e inspirações vindas dos anjos, diz a Sagrada Escritura, com verdade e propriedade, vêm deles e de Deus ao mesmo tempo. O Senhor, efetivamente, costuma comunicar suas vontades aos anjos, e eles vão por sua vez comunicando-as uns aos outros sem dilação alguma, com um raio de sol que atravessasse vários vidros colocados na mesma linha.[4]

De acordo com a grande visão do profeta Ezequiel, havia quatro Querubins que seguiam o Espírito por onde quer que Ele fosse:

Eu vi que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem envolta em claridade e relâmpagos, no meio da qual brilhava algo como se fosse âmbar saindo do meio do fogo. No centro aparecia a semelhança de quatro seres vivos. Este era seu aspecto: possuíam semelhança humana, e cada um apresentava quatro rostos e tinha quatro asas. Suas pernas eram retas, e as plantas dos pés eram como patas de bezerro, emitindo um brilho como de bronze candente. Por baixo das asas tinham mãos humanas nos quatro lados. Todos os quatro tinham rostos e asas pelos quatro lados. As asas tocavam-se uma à outra. Ao andarem, não se voltavam; cada um andava para a frente.
Quanto à forma dos rostos, tinham rosto humano, rosto de leão do lado direito de cada um dos quatro, rosto de touro do lado esquerdo de cada um dos quatro, e rosto de águia cada um dos quatro.
Tinham as asas estendidas para cima, duas asas que se tocavam uma à outra, e duas asas que cobriam o corpo. Cada um andava para a frente. Iam para onde fosse o espírito e não se voltavam enquanto andavam.” (Ez 1, 4-12).

As diferentes características da relação dos Querubins com Deus[5] nos lembram o papel de mediação dos Anjos como servos e companheiros do Verbo Divino; daí a sua multíplice presença na encarnação do Filho de Deus. Isso conduziu à tradicional associação entre os quatro seres vivos e os quatro Evangelhos, inspirados pelo Espírito Santo.[6]

Existem quatro seres e, de certo modo, apenas um, assim como existe apenas uma vida de Jesus que é, no entanto, descrita em quatro Evangelhos. O seu rosto quádruplo, que olha em quatro direções, simboliza a missão dada por Jesus aos Apóstolos de anunciar o Evangelho ao mundo inteiro (cf. Mt 28, 19; Mc 16, 15.20).

Na sua palestra inaugural como bacharel em Sagrada Escritura, em 1252, Sto. Tomás de Aquino apresenta a divisão dos quatro Evangelhos segundo o mistério de Cristo e acrescenta a relação com cada um dos quatro seres vivos.[7] Ainda dez anos depois, na sua coleção de comentários dos Padres da Igreja sobre as Escrituras, a Catena Aurea, Sto. Tomás cita vários deles que sustentam a mesma posição, o que resulta na seguinte e mais comum atribuição: o rosto de homem está relacionado com São Mateus, porque ele se detém mais na Encarnação e na moral humana; São Marcos está ligado ao leão, porque começa o seu relato com a expressão do poder divino e trata da Ressurreição. São Lucas está relacionado com o bezerro ou touro, a vítima sacrificial, pela sua ênfase na Paixão, no sacrifício, no sacerdócio. São João é representado pela águia, por partir da divindade de Jesus Cristo e dos milagres da divina Ressurreição.[8]

Embora inexista concordância unânime na tradição teológica quanto à atribuição dos quatro seres vivos aos quatro evangelistas, ainda assim a maioria dos Padres da Igreja e dos teólogos associa o ser vivo com rosto de homem a São Mateus e, aos demais evangelistas, aqueles com rosto de animal.


 

[1]              CONCÍLIO VATICANO II, Dei Verbum, §11.

[2]              Sto. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae (ST), São Paulo: Edições Loyola, 2002ss., p. II-II, q. 172, a. 2c.

[3]              Sto. TOMÁS DE AQUINO, ST, p. II-II, q. 172, a. 2; cf. ibid., aa. 5 e 6.

[4]              São JOÃO DA CRUZ. Noite Escura da Alma, II, 12.3 em Obras Completas, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 524.

[5]              Cf. Ex 25, 22; por exemplo, 2Sam 22, 11; Sl 18, 10-11: “Ele inclinou os céus e desceu, uma nuvem escura estava sob seus pés. Montou num querubim e voou, pairando nas asas do vento.”

[6]              Cf. comentário da tradução inglesa da Bíblia de Jerusalém sobre Ez 1, 10.

[7]              Cf. Sto. TOMÁS DE AQUINO, De commendatione et partione sacrae scripturae, in Sapientia Crucis (Anápolis) XII, 2011, 33-49, p. 48.

[8]              Cf. Sto. TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea: Exposição Contínua sobre os Evangelhos. Vol. 1: Evangelho de São Mateus. Campinas: Ecclesiae, 2018, Prólogo, p. 43.

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