Quando o amor exige purificação

“Não nos encontramos aí diante de um simples tribunal. Apresentamo-nos diante do poder do próprio Amor. É sobretudo o Amor quem julga. Deus, que é Amor, julga através do Amor. É o amor a exigir a purificação.” .

(São João Paulo II)

Nos tempos em que a heresia ameaçava a integridade da fé sobre as realidades últimas, em particular a doutrina do Purgatório, coube ao Magistério reafirmar em seus concílios – Florença (1439) e Trento (1563) – esta doutrina divinamente revelada. Os frutos do longo itinerário de discernimento, assimilação e defesa do patrimônio dogmático são hoje recolhidos no ensinamento oficial da Igreja, em particular, no Catecismo: “Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão plenamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após a morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do céu. A Igreja denomina purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente diferente do castigo dos condenados.” (CIC 1030-1031).

Nenhuma linha da Escritura nos fala explicitamente do purgatório. Fato que poderia espantar os mais fracos, e tanto mais os desacostumados com o agir multifacetado do Espírito. Ocultar um mistério não é o mesmo que negá-lo, nem mesmo desdizê-lo. Nem se afina à pedagogia divina revelar segredos a torto e a direito. Considerai os apóstolos, por exemplo. Com que graças de iluminação não foram eles favorecidos do alto? E, contudo, na derradeira noite com o Senhor, em horas da mais ardente intimidade, ouviram-Lhe: “Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas ainda não sois capazes de suportá-las agora.” (Jo 16, 12).

Há, porém, acenos implícitos, uma ponta do véu que se levanta sobre o mistério do além-túmulo. Já no Antigo Testamento, um episódio de intercessão pelos defuntos notabiliza-se na inconfundível figura de Judas Macabeu. Segundo o relato, houve uma guerra e morrera alguns de seus soldados, os quais combatiam por Deus, piedosamente. Ao recolher os cadáveres, descobriu-se, porém, sob suas vestes amuletos pagãos, o que representava uma transgressão da Lei. Talvez por isto lhes coubera a triste sorte da ruína militar.

Imediatamente Judas providenciou uma coleta para o Templo “a fim de que se oferecesse um sacrifício pelo pecado”. E a Escritura conclui: “Ele agiu assim, pensando muito bem e nobremente sobre a ressurreição. De fato, se ele não tivesse esperança na ressurreição dos que tinham morrido na batalha, seria supérfluo e vão orar pelos mortos.” (2Mac 12, 43-44). A esperança de Judas fê-lo recorrer às orações e sacrifícios a fim de que seus soldados “[…] fossem absolvidos do seu pecado.” (2Mac 12, 45). Trata-se da possibilidade de perdão e satisfação dos defuntos. Um estado, por conseguinte, absolutamente diverso tanto da salvação definitiva quanto da eterna condenação.

O Sermão da Montanha, em São Mateus, recolhe o ensinamento mais pertinente de Jesus sobre o purgatório, desde que assegurado o sentido escatológico – isto é, místico-alegórico – do trecho. Tratando sobre a importância da reconciliação, afirma o Senhor: “Entra em acordo com teu adversário […] senão ele te entregará ao juiz, o juiz ao guarda, e tu serás lançado na prisão. Em verdade, te digo: dali não sairás enquanto não pagares o último centavo.” (Mt 5, 25-26). No original grego, a presença do advérbio temporal έως (até, enquanto) nesta última frase indica o caráter provisório da pena e, com isso, a esperança da futura liberdade. Ora, não se trata aqui do inferno, cuja pena é eterna e irremediável, mas, sim, das purificações temporárias do purgatório.

São Paulo, escrevendo aos coríntios, deixou-nos também preciosas considerações que se tornaram clássicas. Comparando o empenho da vida cristã a uma construção cujo alicerce é o próprio Cristo, afirma que cada um poderá edificar com ouro ou prata, pedras preciosas ou madeira, feno ou palha. Chegará o momento em que a obra de cada um será revelada: “o Dia a manifestará, pois no fogo é revelada, e o fogo provará a obra de cada um. Se a obra que alguém construiu permanece, receberá a recompensa; se a obra de alguém for queimada, ele será punido, mas ele mesmo será salvo, como que através do fogo.” (1Cor 3, 13-15).

O céu será a recompensa dos que subsistiram à prova. Quanto aos que faliram ao fogo do divino juízo, para estes São Paulo fala em termos não de uma condenação eterna, mas de uma punição simplesmente, em que o fiel se salvará pelo fogo. Uma punição temporária e, ao mesmo tempo, purificadora. Um fogo que conduz à salvação, bem diverso daquele experimentado pelos bem-aventurados – pois Deus mesmo é “um fogo devorador” (Hb 12, 29) –, assim como do fogo da maldição recordado por Nosso Senhor Jesus Cristo: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos!” (Mt 25, 41).

Entre inferno e purgatório cava-se um abismo instransponível. O fogo de um não se assemelha em nada com o do outro. E o elemento crucial que os distingue e os separa é o Amor. O suplício das almas condenadas consiste, como sabemos, na rejeição radical do Amor. É um reino de ódio sem volta. Bem outra é a condição das almas do purgatório. Ainda que a intensidade de seus sofrimentos supera em muito aos da terra, tudo ali é obra do Amor. São pobres, sim, pois nada podem fazer por si mesmas. Não ignoram, contudo, a bem-aventurança que lhes está reservada.

Há um fogo salutar que as devora em seu íntimo sem as consumir. No âmago deste ardor revela-se a natureza de suas penas: a angustiante privação de Deus unida ao desejo ardente de Sua Face, na mais sincera contrição amorosa. Estando, pois, agora desembaraçadas das paixões e das limitações impostas pela sensibilidade, estas pobres almas, como nunca antes, percebem a bondade de Deus e consideram o Seu infinito Amor. À luz do juízo divino, seus mínimos pecados perfazem um doloroso contraste. Tudo deve ser purificado, transfigurado.

Em certo sentido, poderíamos compreender a dinâmica do purgatório à luz da doutrina de São João da Cruz sobre as noites místicas, estes acrisolamentos interiores através dos quais as almas são purificadas por Deus, Chama Viva de amor. Sobre esta possível analogia, falou São João Paulo II durante uma entrevista que deu origem ao livro Cruzando o limiar da Esperança: “Um argumento muito convincente acerca do purgatório foi-me oferecido […] pelas obras místicas de São João da Cruz. A ‘viva chama de amor’, de que ele fala, é antes de tudo uma chama purificadora. As noites místicas, descritas por este grande doutor da Igreja por experiência própria, são, em certo sentido, esse purgatório.”

Em seguida, ele conclui: “Deus faz passar o ser humano por esse purgatório interior de toda a sua natureza sensitiva e espiritual, para poder levá-lo à união consigo. Não nos encontramos aí diante de um simples tribunal. Apresentamo-nos diante do poder do próprio Amor. É sobretudo o Amor quem julga. Deus, que é Amor, julga através do Amor. É o amor a exigir a purificação, antes que o ser humano amadureça para aquela união com Deus que é a sua vocação definitiva e o seu destino.”

Com a morte, cristaliza-se para sempre o resultado de nossas livres escolhas; revela-se a veracidade ou a hipocrisia do nosso amor, o ouro ou a palha de nossas obras. O que aos homens foi capaz de permanecer escondido, não escapará ao divino Juiz, cujos olhos “são como chamas de fogo” (Ap 19, 12). A caridade, pois, é a chave do Coração de Deus, a pedra de toque do julgamento: os que souberam conservá-la receberão a recompensa, mesmo os que, no último instante, recuperaram-na pela força transformadora da contrição. Diante das exigências do amor todas as lógicas humanas se desfazem. Só na eternidade experimentaremos o alcance da lição de Cristo: “há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos.” (Lc 13, 30).