Texto de Romano Guardini
Estamos no Advento. As semanas de espera chegaram, nas quais aguardamos com perseverança a chegada do Redentor. É um tempo que toca o coração como nenhum outro; é um tempo repleto de um anseio infinito. Milhares de vozes se elevam nas orações da Igreja e clamam sem cessar. Milhares de olhos espreitam na distância, vasta e escura, para ver se Ele já chegou. Mãos se estendem e suplicam. Os corações se abrem largamente e pulsam em anseios profundos e santos.
Anseio e clamores sem fim se elevam das orações da Igreja[1], às vezes como pedidos insistentes do mais profundo da alma: “Vós guia de Israel, vinde!” Outras vezes como que vindo de grande aflição e sofrimento: “Ó Senhor, eu Vos suplico enviai aquele que quereis enviar, vede a miséria do Vosso povo, vinde assim como prometestes!” Algumas vezes esses clamores soam como repletos de angústia: “Apressai-vos, Senhor, libertai o Vosso povo! Vinde, Senhor, não tardeis!” E então novamente soam palavras comovedoras, como quando alguém, tomado de grande pavor, encoraja-se a si mesmo: “Sim, certamente, o Senhor virá… E naquele dia brilhará uma grande luz… Ele vem com força e poder real…” Vozes sussurram misteriosas, prometendo: “Tende confiança, Eu venho, Vosso Senhor e Deus, e vos conduzo para casa… Como uma mãe consola os seus filhos, assim Eu quero consolar-vos… Deveis procurar e o vosso coração há de se alegrar!” E então, de repente, se eleva o júbilo luminoso, como de um coração que por muito tempo sofre angústia, de repente de algum lugar das profundezas do coração sobe uma certeza bem-aventurada: “Vós árvores, estendei largamente os vossos ramos, florescei e produzi frutos, pois não tarda muito e virá o dia do Senhor…”
Assim as orações ressoam através de todas as semanas do Advento, de modo cada vez mais impetuoso. Uma ânsia ardente irrompe do coração do homem, tão grande, que é como se ela tivesse que vencer Deus e forçá-l’O naquilo que ela tanto anseia.
Até o dia de Natal as palavras ressoam: “Vede, agora é a plenitude dos tempos, quando DEUS enviou o Seu Filho à terra… Por causa do seu imenso amor, com o qual Ele nos ama – amanhã deveis contemplar o Seu esplendor.”
Então é Natal e uma santa alegria nos enche a todos nós.
Sim, o tempo no qual agora vivemos é um tempo de anseio, um tempo no qual uma saudade sem limites e sem fim irrompe das profundezas do coração.
Mas, um anseio, uma saudade de que? Do Redentor, da luz de Cristo, da plenitude de Cristo e da Sua Paz. Assim clamam as muitas preces da Igreja.
Mas o Senhor está aqui! Ele já apareceu!
E, no entanto, se clama e se suplica para que Ele venha, como se fôssemos ainda pagãos! Como se Isaías falasse ainda aos homens do Antigo Testamento. Assim clamamos muitas vezes neste tempo de Advento: “Vinde, Senhor, vinde para o Vosso povo.” O que significa isso?
Pode Ele já ter vindo e no entanto não ter vindo?
Pode Ele estar aqui e ao mesmo tempo estar longe?
É possível possuir e ao mesmo tempo sentir a falta e ansiar?
Sim, isso é possível! E com certeza todos nós já experimentamos isso.
Como podemos crer em Deus – e depois clamar: “Senhor, ensinai-me a crer!” Como podemos conhecer o Redentor – e, no entanto, desejar do mais profundo do coração: “Senhor, abri os meus olhos para que eu possa conhecer-Vos!” Como é possível receber o Senhor na Santa Comunhão – e mesmo assim sentir com a alma faminta o quanto estamos longe d’Ele. Como é possível ser cristão – e, no entanto, poder sentir com todas as fibras do seu ser: “Eu não o sou de fato!” Por isso, de quando em quando, irrompe da alma esta ânsia com dolorosa violência: “Senhor, vinde, vinde!”
Isto é o Advento, o tempo do anseio, da saudade. Este é o tempo no qual somos justamente nós mesmos: homens pobres, despedaçados.
Não é realmente assim? Sejamos totalmente honestos diante de nós mesmos. O Senhor só vem para corações sinceros. Somos cristãos? A rotina o confirma e a vaidade também. Mas a Igreja parece ter outra opinião, caso contrário ela não nos ensinaria a clamar pelo Redentor com todas as fibras do nosso coração. Além disso, do mais íntimo da nossa alma uma voz se levanta e diz: “Ela tem razão. Eu sou um cristão e, no entanto, não sou assim como eu deveria ser, falta ainda muito!”
Quando ouvimos falar de DEUS na Igreja, o quanto Ele é poderoso e grande – isso toca o nosso coração? Ou permanecemos insensíveis e frios diante disso? Por quê?
Quando nos falam sobre o Senhor, o que Ele fez, falou e sofreu, por que isso não nos comove e entusiasma? A Palavra do Senhor penetrou nas almas dos Apóstolos e não os deixou mais, de modo que eles tinham de segui-l’O e oferecer tudo a Ele, até a ponto de entregar a vida por Ele. Por que não acontece o mesmo conosco?
Quando rezamos – São Paulo fala do Espírito de Cristo, que reza nos corações dos filhos de Deus e clama com suspiros inefáveis (cf. Rm. 8, 26) – por que não sentimos nada disso? Sejamos bem simples e diretos: por que, em geral, é tão difícil para nós o simples fato de estar em oração?
Os sofrimentos chegam e as horas difíceis também e a sabedoria popular nos diz que estas situações nos “ensinam a rezar”. Estes sofrimentos e dificuldades teriam de nos impelir para Deus com força, de modo que nos seguremos n’Ele. Mas, é assim mesmo? Muitas vezes não é Deus o último no qual pensamos? E por quê?
Por que não desponta de cada hora feliz, em primeiro lugar, um ato de gratidão para Ele, pois foi Ele quem nos concedeu tal felicidade? E quando a alegria se dissipa e o coração sente nitidamente que todo prazer terreno passa tão depressa e não preenche a alma – por que ela não se volta espontaneamente e totalmente para lá onde tudo permanece para sempre?
Se somos cristãos, por que então não vivemos como cristãos? Por que negociamos com as tentações, em vez de afastar de nós toda mentira, toda desonestidade e todo prazer impuro com um não claro e nítido? Um grande homem (São João Henrique Newman) apresentou uma vez esta amarga pergunta: “Afinal de contas, o que é que tu fazes que também não o farias se não fosses um cristão?
E assim segue um “porquê” depois do outro.
Não é assim que o nosso coração nos dá uma resposta clara, quando o queremos realmente ouvir?
Tudo é assim porque não és ainda um verdadeiro cristão! Porque o Espírito de Cristo e a Sua verdade mal penetraram debaixo da tua pele, quanto menos ainda no teu coração e na tua medula e em cada fibra do teu ser! Porque estás longe de DEUS. Porque conheces o Seu Nome e aprendeste muitas coisas com a memória, mas não compreendeste o Senhor com o teu coração. Porque conheces Jesus assim como conheces outras coisas, mas não permitiste que Ele lançasse raízes profundas na tua alma. Tu ainda não O encontraste, ainda não ficou claro para ti que Ele é incomensuravelmente grande e que a Sua Palavra é repleta de vida. Ainda não deste a Ele a tua alma. Tu não poderias dizer-Lhe: “Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que eu Te amo!” (Jo 21, 16).
Por isso somos tão fracos, por isso toda a nossa agitação e falta de paz. Por isso não seremos capazes de nós mesmos, não conseguiremos enfrentar o sofrimento, também não seremos capazes de lidar com a alegria. Por isso não somos capazes de enfrentar o mundo e estamos impotentes diante do tempo com todo o seu ódio e sua confusão. Por isso somos tão incapazes, gostaríamos mas não podemos, sentimos nossas fraquezas e não sabemos como remediá-las, estamos enredados num emaranhado de fios e não sabemos como sair disso. Por isso levamos uma vida tão longe de Deus.
Portanto deveria irromper do mais profundo do nosso coração este clamor: “Vinde, libertai-nos, ó Deus Forte! Fazei a Vossa Face resplandecer sobre nós e seremos salvos. Vede a aflição do Vosso povo, vinde assim como prometeste!”
Sim, por isso experimentamos no Advento este sentimento de dor. Neste tempo podemos ser totalmente o que somos de fato: homens pobres e despedaçados. Cristãos de acordo com o Nome de Cristo e pela Redenção, porém, ainda muito longe de ser cristãos segundo o nosso coração. Pessoas que conhecem a Deus e, no entanto, tão longe d’Ele, pessoas que chamam a Nosso Senhor de Mestre e que sabem tão pouco a respeito d’Ele.
Então irrompe da nossa alma, de modo totalmente espontâneo, o grito cheio de ânsia: “Orvalhai o Justo, ó Céus, e Vós nuvens chovei o Messias. Abra-se a terra e deixe o Redentor germinar!”
Rezemos! Rezemos para alcançar a graça do Natal. Pois todo o tempo de Advento tem unicamente o sentido de que depois dele venha o Natal. O Natal para a nossa alma. Mas o que é a graça do Natal?
Significa que o Salvador se aproxima de nós. Que Ele nos abre os olhos do coração e que O reconhecemos. Reconhecemos quem Ele é. Entendeis o que quer dizer isso? Não significa entender meramente com a razão, mas reconhecer com o coração! Profundamente dentro da nossa alma deve tornar-se claro quem Ele é. Assim como podemos ter conhecido uma pessoa durante muito tempo, sem se importar muito com ela. Mas em um dia qualquer através de uma conversa ou de qualquer ocasião essa pessoa torna-se de repente muito próxima de nós. Então para nós, é como se a víssemos somente agora da maneira certa, ela torna-se cara para nós, sua palavra adere profundamente no coração. Do mesmo modo deve ser com o nosso Redentor. Pois assim levaremos tudo o que Lhe diz respeito de modo muito mais sério. Somente então entenderemos verdadeiramente o que Ele nos disse e nos esforçaremos para “segui-l’O”, para sermos semelhantes a Ele, arrancando da nossa vida aquilo que não está de acordo com a Sua vontade.
Então estaremos seguros n’Ele. Então nos voltaremos a Ele na alegria e na dor e através d’Ele ao Seu Pai no Céu. Assim realizaremos o nosso trabalho e estaremos ao mesmo tempo junto d’Ele. Deste modo viveremos entre pessoas que pensam de uma maneira totalmente diferente, permanecendo, porém, fiéis a Ele.
Então em nós tudo se tornará claro, firme, seguro e unido. E encontraremos a coragem de oferecer cada sacrifício por Ele. Encontraremos a força para enfrentar com Ele o mundo inteiro, mesmo que este mundo se encontrasse tão confuso, tão violento, tão extremamente soberbo, tão desamparado e desesperado.
Sim, rezemos sempre nessa intenção, cada dia, em boa ou má disposição, no fervor ou na indiferença.
Tomemos os cantos de Advento e rezemos através destes cantos, todos os dias.
Mas com o coração cheio de anseio ardente. Clamemos por Deus, assim como as palavras nos vêm aos lábios. Procuremos ir por um momento à igreja no decorrer do dia e supliquemos a Ele.
Sejamos verdadeiramente “pessoas que anseiam, dotadas de desejo ardente”, e então o Natal virá para nós.
Pois se a um pedido foi dada esta promessa: “Pedi e recebereis, batei e vos será aberto” (Mt. 7,7) – então esse pedido é que o Senhor possa vir a nós.
[1] As citações abaixo referem-se aos textos litúrgicos (sobretudo dos Salmos e dos Profetas) utilizados no tempo do Advento.